The People Under the Stairs (1991)


Os Prisioneiros da Cave, real. Wes Craven. EUA, 1991. 35mm, cor, 102 min.

Nesta parábola social, a alegoria figura o medo profundo, o delírio do poder, a ganância desmedida, o fanatismo agressivo, a violência cega. Toda a parábola encerra uma verdade importante. A desta é a de que os que ganham apenas com o prejuízo do seu semelhante tornam-se seres esquizofrénicos, desarticulados, desconectados, fechados num mundo que inventam para si, longe dos outros. É o que acontece à mente das personagens interpretadas por Everett McGill e Wendy Robie, o homem e a mulher, os irmãos que querem formar uma família perfeita. Eles são donos de muitos dos edifícios de uma das zonas mais pobres da cidade e querem despejar os últimos inquilinos para ganharem mais com a especulação. Os esfomeados e os drogados que se acotovelam, os apartamentos vazios e empoeirados, a imundice que infesta tudo, escondem a última família residente. A mãe, deitada na cama, sofre de cancro. A filha cuida dos seus bebés e consegue pouco dinheiro. O filho é um miúdo de 13 anos (Brandon Quintin Adams) — a irmã chama-lhe “fool”, isto é, “bobo”, a figura que lhe saiu no tarot. Fool decide ajudar Leroy (Ving Rhames) e um amigo a roubarem as riquezas da casa dos senhorios. O assalto corre mal e desvenda segredos. É difícil penetrar na casa e ainda mais sair dela. Dentro da casa, o miúdo encontra Alice (A. J. Langer), uma criança que não sabe que foi raptada e assume o papel de filha. Ela nunca saiu da casa. Teme o exterior. Fool encontra também prisioneiros na cave, subjugados, esfomeados, filhos punidos por terem visto, ouvido, e dito coisas malignas. A demência dos donos da casa é demonstrada pela sua reacção à invasão: ele faz-se acompanhar por um Rottweiler e uma espingarda, usa fato de cabedal preto, e tem uma pose sado-masoquista; ela grita, histérica, e quer manter a pureza de Alice. A casa é um sistema pouco transparente, quase labiríntico, sempre a permitir outro caminho, outra ligação. Há elementos e divisões que se transformam — a escada que se torna rampa, a dispensa que esconde a cave. Tudo é aparência. Há outro andar, duplo do piso rústico e luxuoso habitado, tão abandonado e sujo como os lugares onde os pobres moram. A casa, lugar onde quase toda a acção do filme decorre, é uma representação da sociedade estado-unidense, nos seus contrastes, oposições, e dificuldades. A mise en scène de Wes Craven concentra tudo na vibração do espaço, através dos ângulos de planos e da relação do desconhecimento das personagens com a sua inscrição na vastidão ou desdobramento espacial. Há algo na casa que escapa ao controlo do homem e da mulher, personificado por Roach (Sean Whalen), a quem a língua foi cortada, sem que esse silenciamento pudesse conter a sua revolta. Algo que a rasga do interior e a faz explodir no final, com milhares de notas a esvoaçarem. A ideia para o filme surgiu ao cineasta quando leu uma notícia semelhante à história do assalto. A sua ambição era representar a herança deixada por Reagan (política de restrições sociais, liberalismo económico agressivo, descriminação e desigualdade instituídas) e a América governada por Bush desde 1989 (Fool entra na cave e uma televisão mostra Bagdade a ser bombardeada na Guerra do Golfo). O retrato caricatural do casal de exploradores envolve imagens de canibalismo, incesto, e abuso de menores, num equilíbrio frágil entre a sátira excessiva e a alegoria que nunca abdica do realismo. A loucura que o casal personifica justifica o excesso. [20.02.2010, orig. 08.2002]