Dead Ringers (1988)


Irmãos Inseparáveis, real. David Cronenberg. Canadá/EUA, 1988. 35mm, cor, 116 min.

Dois gémeos ginecologistas, Beverly e Elliot Mantle, ambos interpretados por Jeremy Irons, vivem os corpos do interior para o exterior. Admiram as paisagens ocultas aos olhos, mas vivas ao tacto. Ainda na faculdade, criam instrumentos que talvez só sejam possíveis de ser utilizados em cadáveres. São utensílios imaginados para escancararem a beleza interior dos corpos, desenhados pelo cineasta David Cronenberg, idênticos a partes de insectos para que a metamorfose se consuma, como noutro filme seu, A Mosca (The Fly, 1986). São as operações em seres diferentes, únicos, “mutantes” como são denominados no filme, que justificam a idealização desses objectos. Claire Niveau (Geneviève Bujold), uma actriz de projecção internacional em decadência, é um desses seres: o seu útero é trifurcado. A relação que se inicia entre ela e os dois irmãos irá desequilibrar o seu universo friamente ordenado e impulsionar a mutação. A ordem inerente ao universo dos semelhantes é a simetria aparente, por isso o número três pressupõe uma exclusão ou talvez uma junção. Reaparecem cesuras e estas cicatrizes que renascem nos gémeos Mantle derivam da nostalgia de um corpo uno — uma unidade que remete também para a imagem da mãe como origem e destino. Será Claire a sua substituta? Ou será ela o elemento feminino que só pode causar a queda, dividir o aparentemente indivisível? Existe ou foi sonhada? No fim, Beverly dirige-se a um telefone público só para confirmar a alucinação. E se, no início, os gémeos parecem complementares, seres opostos nas suas características, tudo termina na mais trágica das solidões. Porque Beverly e Elliot são menos duas metades e mais duas imagens de uma mesma verdade. Essa verdade passa no essencial pelo trabalho de Irons, frágil, magoado, isolado, ou melhor, frágeis, magoados, isolados, um pelo outro, um no outro. Da cor vermelha a ferir o frio do metal à suspensão dos gestos, da triste devastação à clausura dos espaços — este é um dos retratos mais secretos da história do cinema. Retrato? Mais correctamente podemos dizer que o que dimensiona este mundo, o mundo de Cronenberg em geral e o deste filme em particular, é intraduzível ou não rigorosamente referenciável. A violência interior que rasga as personagens é inseparável de um expressivo e despojado labor sobre os materiais. A figuração é, neste caso, um gesto de depuração. [03.07.2012, orig. 10.1998]