Spotlight (2015)


O Caso Spotlight, real. Tom McCarthy. EUA, 2015. DCP, cor, 128 min.

Em 1996, no seu estilo intempestivo e provocador, muitas vezes prejudicialmente estridente, o frade dominicano Jean Cardonnel acusava a Igreja Católica de ser, antes de mais e sobretudo, uma instituição — em vez de uma assembleia popular de homens e mulheres convocados para a liberdade. O escândalo dos abusos sexuais de menores cometidos por padres e das acções da hierarquia que encobriram, silenciaram, e perpetuaram esses casos é disso um exemplo. Eis uma manifestação da autojustificação autoritária da hierarquia que se confunde com a Igreja como um todo, como descreveu o também dominicano Yves Congar. O Caso Spotlight lida com este escândalo de forma reflectida, honesta, não sensacionalista mas também não receosa, dando grande atenção aos detalhes. Escolhe o ponto de vista do grupo de quatro jornalistas do The Boston Globe, a unidade de jornalismo investigativo Spotlight, que investigou a fundo as dezenas de padres pedófilos em Boston e a sua dissimulação institucional. O foco não são os casos individuais, embora eles tenham protagonismo através da palavra das vítimas. Mas a natureza sistémica e alargada do problema, um padrão bem estudado pelo ex-monge beneditino Richard Sipe, cuja voz vai pontuando a investigação. A Igreja tem uma enorme influência na cidade de Boston, habitada em grande parte por descendentes de imigrantes irlandeses e italianos. Domina dimensões da vida social muito para além do campo religioso. Na costumeira recepção pelo cardeal Francis Law do novo editor do jornal, o judeu Marty Baron recebe, por isso, um exemplar do Catecismo da Igreja Católica como “o guia para Boston”. A investigação desmascara o silêncio cúmplice e a inacção deferente que se generalizaram nesta comunidade. A função ideológica da autoridade inquestionável baseada num poder incomensurável sobressai no falseamento e adormecimento da consciência política, infiltrando-se em todos os corpos sociais, bloqueando a contestação, mantendo o statu quo. Nem o jornal escapa a esta teia, tendo em conta que já tinha publicado denúncias que não tiveram seguimento, quer por pressões externas, quer por hábitos internos. Cada jornalista da equipa recebeu educação católica, mas afastou-se da prática religiosa por razões diferentes. O Caso Spotlight mostra a importância da função social do jornalismo de evidenciar o que permanece escondido, de revelar a verdade. Estes jornalistas encontraram factos, verificaram fontes, assumiram o papel de paladinos da necessidade de justiça. O ritmo do filme é marcado pelas actividades do trabalho jornalístico: procurar e copiar documentos, bater à porta, falar ao telefone, entrevistar, tirar notas. Esta investigação, que lhes valeu o Prémio Pulitzer pelo Serviço Público em 2003, permitiu a descoberta de outros casos nos EUA, na América do Sul, e na Europa. Incentivou a investigação na Igreja irlandesa — que nunca foi conduzida em Portugal, apesar das denúncias de Catalina Pestana através da Rede de Cuidadores. Clarificou os reais obstáculos que a Cúria Romana no Vaticano criou a uma resposta vigorosa contra os padres criminosos. Este filme surge num tempo crucial, depois da exposição pública da corrupção na Igreja em 2012 no VatiLeaks, divulgação de documentos secretos que mostraram a estrutura de poder e o fluxo financeiro no Vaticano. Em 2011, entraram em vigor orientações para que as dioceses cooperem com a polícia e respeitem as leis locais na investigação de alegados abusos sexuais, dando instruções para a denúncia destas alegações às autoridades civis sem a tornar obrigatória. Estas recomendações, por serem apenas isso, foram criticadas como insuficientes por parte das vítimas. A 22 de Março de 2014, o Papa Francisco instituiu a Comissão Pontifícia para Protecção de Menores, que se espera que tenha um impacto profundo nos mecanismos de protecção das vítimas. Em Novembro do mesmo ano, o Papa excomungou o padre pedófilo argentino Jose Mercau. No entanto, a nomeação pessoal do cardeal Godfried Danneels, que comprovadamente silenciou abusos na Igreja belga, para o Sínodo da Família deixa inquietações sobre as decisões de Francisco. A procura de respostas e a necessidade de soluções continua. Talvez seja difícil para muitos católicos assistirem a este filme e confrontarem estes factos. Mas é necessário. O Caso Spotlight deixa claro que nada teria mudado sem a acção dos católicos, da juíza que decide tornar públicos documentos que a Arquidiocese de Boston insistia em manter secretos aos advogados que trabalharam em muitos dos casos e forneceram pistas para a investigação. Este trabalho jornalístico revelou a verdade e impulsionou a transformação e a emancipação. O filme termina no gabinete da equipa Spotlight inundado por telefonemas de pessoas que querem contar as suas histórias, a seguir à publicação do primeiro artigo. A verdade libertou-as. [24.04.2016, orig. 02.2016]