Porque Não Sou o Giacometti do Século XXI (2015)


Porque Não Sou o Giacometti do Século XXI, real. Tiago Pereira. Portugal, 2015. DCP, cor, 50 min.

Tiago Pereira iniciou o projecto “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” em 2011. Guiou-o a ideia de percorrer Portugal e gravar manifestações musicais (e coreográficas) de vários géneros e feitios. Não sendo um trabalho reflexivo, mas de arquivo, tornou-se necessário responder a perguntas que ele foi colocando a si próprio: “Porque faço o que faço? Quais as relações com as gentes? O que me distingue do trabalho científico? O que é a tradição?” Este filme documental é uma resposta a esta necessidade. Neste momento, o arquivo conta com cerca de mil registos em vídeo de alta definição de pessoas a cantar, a tocar, e a dançar num registo simultaneamente próximo e encenado. Próximo, porque a ligação da pequena equipa, e de Tiago em particular, com quem está a ser filmado é evidente — por vezes, evidenciada de forma directa quando alguém fala para fora do campo. Encenado, porque os locais e os enquadramentos são escolhidos a dedo, privilegiando o contexto e a paisagem e optando pela fixidez da câmara. A proximidade não apaga o facto da encenação, porque há um aspecto performativo naquilo que as pessoas fazem para a câmara. Daí que Tiago diga que, tal como a tradição se vai (re)inventado, ele “faz ficção com a realidade”. O documentário começa com um poeta popular que diz ter décimas sobre qualquer tema. Primeiro surge o plano filmado e, depois, uma segunda câmara revela a cena de filmagem. Eis a deslocação que o filme quer explorar. Ao longo de Porque Não Sou o Giacometti do Século XXI veremos mais excertos de vídeos e os seus bastidores entrecortados por duas entrevistas com tons distintos: uma conduzida por Inês Oliveira em volta de uma mesa em tom de conversa, outra da qual a interlocutora Telma Morna está ausente captada no exterior em tom de monólogo. Tiago assume que o arquivo tem uma dimensão quantitativa, sem estudo nem critério que o sustente. A colecção reúne momentos raros ou quotidianos na vida das pessoas filmadas. A câmara regista aquilo que elas generosamente oferecem e que mais tarde é divulgado como numa rádio pirata. Os momentos musicais só têm força quando neles ficam impressos toda a humanidade de quem se dispôs a participar no projecto. Isso quer dizer que podem incluir tentativas de recordar, muitas vezes por entre silêncios. Se para um etnógrafo da música o repertório e a sua preservação é o mais importante, para ele o fundamental é esta tentativa resistente de manter viva a música no dia-a-dia destas gentes. Quando as frases que ligam Tiago ao etnomusicólogo francês Michel Giacometti, responsável pelo maior levantamento sistemático da música regional portuguesa, aparecem no fim, já os dois foram desligados pelo primeiro. Ele não se opõe a que o considerem o Giacometti do Século XXI, ou que alguém o queira ser, diz apenas que ele não o é. Esta atitude demonstra respeito pela obra de Giacometti ao mesmo tempo que demarca “A Música Portuguesa a Gostar dela Própria” das pesquisas académicas. Tal não quer dizer que esta recolha não possa gerar conhecimento. O seu processo é, aliás, semelhante ao que foi parcialmente seguido na produção do cinema etnográfico de Jean Rouch. Mesmo que os vídeos excluam o discurso científico que encontramos nos filmes desse cineasta, a importância humanista dada à confiança estabelecida entre quem é filmado e quem filma não deixa de aproximar os dois. [08.05.2016, orig. 04.2016]