Oktyabr (1928)


Outubro, real. Sergei Eisenstein e Grigoriy Aleksandrov. URSS, 1928. 35mm, pb, 104 min.

Outubro foi um dos filmes produzidos na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) para celebrar os 10 anos da Revolução de Outubro de 1917. Entre as outras produções, a única com dimensão comparável foi O Fim de São Petersburgo (Konets Sankt-Peterburga, 1927), realizado por Vsevolod Pudovkin e Mikhail Doller. Mas mesmo esse filme não teve um orçamento passível de comparação com o de Outubro: 20 vezes superior à média das produções do cinema soviético nessa altura. O filme de Eisenstein foi a aposta forte da celebração da revolução no cinema. Outubro baseia-se no livro do jornalista estado-unidense John Reed, Dez Dias que Abalaram o Mundo, publicado em 1919. Reed tinha vivido os acontecimentos de dois anos antes como revolucionário e Lénine era um grande admirador deste relato para o qual escreveu um prefácio. Eisenstein tinha realizado o filme soviético com maior impacto popular dentro e fora da URSS: O Couraçado Potemkin (Bronenosets Potiomkin, 1925). Terá sido por isso que teve oportunidade de dirigir Outubro. Tal como O Couraçado Potemkin, Outubro pertence a uma categoria de obras que Peter Kenez (Universidade da California, Santa Cruz) denomina de “espectáculos revolucionários”. A rodagem durou seis meses. A filmagem do assalto ao Palácio de Inverno envolveu 11 mil figurantes e a sua iluminação terá deixado grande parte de Leninegrado (antes Petrogrado, hoje São Petersburgo) sem electricidade. Segundo consta, houve mais gente que se aleijou na encenação do que na verdadeira tomada do palácio, residência oficial do governo provisório encabeçado por Alexander Kerenski. Houve também mais danos no edifício. Pudvokine conta que quando chegou ao palácio para nele filmar algumas cenas, depois da rodagem de Outubro, decorria uma limpeza a 200 vidros partidos. Nessa ocasião, encontrou um velho porteiro que lhe disse: “Vocês tiveram mais cuidado há 10 anos do que agora.” As outras cenas de grandes movimentos de massas foram encenadas como esta, inspiradas nas recriações de rua a que Eisenstein e cerca de 100 mil espectadores assistiram em 1920. Muitas mulheres e muitos homens que tinham vivido os acontecimentos revolucionários participaram no filme. A obra, aliás, quase não recorreu a actrizes e actores profissionais. Lénine, por exemplo, foi interpretado por Vasili Nikandrov, um operário de uma cimenteira. Segundo o materialismo histórico, que decorre do materialismo dialéctico, os eventos histórico-políticos resultam do conflito de forças sociais com interesses comuns (ou classes) que tem como base as suas necessidades e os recursos materiais existentes. Esta luta toma a forma de uma série de tensões e contradições que se vão resolvendo de modo dialéctico. Esta teoria permite assim uma tomada de consciência sobre o modo como as sociedades humanas têm, em geral, funcionado, abrindo por isso a possibilidade real da sua transformação. Outubro está estruturado em partes, nas quais se vêem estes princípios em acção, de um choque (determinado) entre forças materiais até uma resolução dialéctica (provisória). Por exemplo, no início, a antiga ordem monárquica e semi-feudal representada pela estátua do Czar Alexandre III é desafiada pela Revolução de Fevereiro. O que resulta desse processo é a criação do governo provisório. Mas, depois, a guerra e a fome continuam sob esse governo e organizam-se grandes protestos nas ruas, no rescaldo do regresso de Lénine a Petrogado vindo de Helsínquia, que são violentamente reprimidos. Mas a revolta organizada consegue capturar mais tarde o arsenal de Petrogado. E assim em diante. Um outro aspecto onde se vê a dialéctica em acção é na relação entre o indivíduo e o colectivo. Outubro é um filme de massas populares, do povo a conduzir a história, da força colectiva tecida da união de vontades individuais, isto é, uma obra que não nega a importância do indivíduo, mas que mostra a sua transcendência no viver comum. Mesmo Lénine, e V. Antonov-Ovseenko, e L. Trótski, dirigentes importantes, estão pouco tempo no ecrã, têm pouco protagonismo. São pessoas entre pessoas no meio da maré da revolução. Lénine escreveu uma vez “o marxismo é o sucessor legítimo do que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês”. Pode-se dizer algo de semelhante sobre o cinema de Eisenstein. Ele condensa e desenvolve elementos que vêm de outros cineastas, como D. W. Griffith, e de outras artes, como o teatro. O cineasta soviético foi particularmente influenciado pelo teatro Kabuki japonês — pelas formas estilizadas, pelos gestos raros e intensificados, pela construção gradual de efeitos, pelo jogo de opostos, e pelos momentos onde a fixidez atinge uma qualidade de quase petrificação. Esta influência é notória em Outubro, devido à importância estética e narrativa que as estátuas e outros objectos adquirem. Observe-se os relógios com horários de diversas cidades encadeados e rodopiados no fim: de Petrogrado a Moscovo, Nova Iorque, Berlim, Londres, e Paris, como se esta revolução socialista pudesse contaminar outros lugares, outras gentes, fazendo - as acertar o passo através da correspondência do tempo. O grande poeta Vladimir Maiakovski criticou o facto de Nikandrov se parecer, não tanto com Lénine, mas com uma estátua de Lénine. Ou seja, mesmo outros artistas tiveram dificuldade em entender o projecto de Eisenstein: construir um filme em que as próprias representações da e na história, a representação de vultos políticos, como Lénine, e de figuras religiosas, como Cristo ou Buda, são problematizadas através da colisão entre a pedra e a carne, entre a fixidez das estátuas e o movimento da revolução. Finalmente, Outubro combina dois filmes que fazem um. Um é uma dramatização dos factos. Outro é um exercício abertamente experimental. Eisenstein não quis fazer um filme puramente factual — a estátua do Czar era em Moscovo e não em Petrogardo, não houve uma multidão a invadir o Palácio de Inverno. Quis antes captar a verdade emocional e social da história da Revolução de Outubro. As cenas mostradas em Novembro de 1927 no Teatro Bolshoi foram as impressionantes cenas de massas. Cenas como a da manifestação contra o governo provisório que termina com a rua povoada de mortos parecem tão autênticas que têm sido utilizadas em filmes documentais como se fossem registos dos eventos que retratam. Mas quando o filme estreou no ano seguinte, a surpresa foi geral. As outras cenas, mais experimentais, valeram a Eisenstein acusações de formalismo. A colisão de imagens contrastantes foi para alguns críticos demasiado evidente, quase intrusiva. Parece claro que o filme não correspondeu ao esperado, frustrando as expectativas como só a grande arte pode fazer. Hoje, passados 90 anos, tornou-se nítido que Outubro rasgou novos horizontes no cinema, novas formas de articulação entre a arte e a história. Foi um filme revolucionário para comemorar a revolução. Foi, portanto, o filme que a revolução merecia, mas não um filme que a sociedade soviética no estado de progresso em que se encontrava pudesse talvez apreciar. Nos 50 anos da revolução, em 1967, o filme foi relançado com uma composição musical original de Dimitri Shostakovich, que apesar de não ser admirador do filme aceitou participar na produção de uma versão sonorizada. Esta recuperação de Outubro no período pós-Estaline fez parte de um processo de reavaliação. O grande desafio do filme mantém-se: deixarmo-nos interpelar por ele é deixarmo-nos interpelar pela própria Revolução de Outubro. [27.11.2017]